Você já parou para pensar na quantidade de microrganismos existentes no mundo? E no nosso corpo? Claro, que como sempre, não estamos sozinhos no mundo e nem no nosso próprio corpo. Atualmente, sabe-se que mais de 1000 espécies de microrganismos habitam nosso corpo, fazendo parte do nosso microbioma [1]. O termo microbioma, cunhado pelo vencedor do prêmio Nobel, Joshua Lederberg, pode ser descrito como: “Um sistema ecológico de microrganismos comensais, simbióticos e também patogênicos que residem no corpo humano” [2]. Possuir um microbioma não é algo exclusivo do ser humano, já que podemos utilizar o termo “microbioma” para nos referir ao microbioma de plantas e de outros animais. Apesar dos termos “microbioma” e “microbiota” serem semelhantes, há algumas diferenças entre eles. Quando falamos de microbiota, estamos nos referindo ao conjunto dos microrganismos presentes em determinada região ou órgão, enquanto o microbioma é o conjunto de genes e materiais genéticos dos microrganismos que habitam determinado ambiente. Além disso, quando pensamos em microbiota, o primeiro pensamento que pode vir à sua mente, deve ser das bactérias intestinais. Porém, esses microrganismos podem ser bactérias, fungos, vírus ou archaea e não estão presentes somente no intestino, mas habitando outros locais do corpo, como boca, garganta, vias aéreas, estômago, intestino, sistema urogenital e pele (Figura 1).
Mas qual é o papel desses microrganismos no nosso corpo? Além de constituírem 90% do número total de células em nossos corpos [4], eles têm um papel crucial na manutenção da homeostase, com diversos benefícios ao hospedeiro, como: desenvolvimento do sistema imunológico e absorção de nutrientes [5]. Sabe-se que alterações na microbiota podem ocorrer por vários fatores, sejam fatores ambientais, dieta, xenobióticos, drogas e até mesmo outros patógenos podem alterar esse equilíbrio entre o microbioma e hospedeiro, o que é chamado de disbiose. Atualmente se sabe que essas relações disbióticas estão correlacionadas no desenvolvimento de doenças inflamatórias e cânceres [6].
Figura 1: Principais sítios da microbiota humana. Diversos fatores podem alterar a composição da microbiota humana e levar ao surgimento de diferentes condições. Fonte: autores.
O principal objetivo do estudo do microbioma humano é de fato estudar a estrutura e a dinâmica das comunidades microbianas e a relação do microbioma e hospedeiro tanto em indivíduos saudáveis quanto na doença. Dessa forma, podemos estudar as interações entre os DNAs e RNAs que estão presentes no microbioma através de técnicas avançadas de sequenciamento de nova geração (NGS) e obter diversas respostas, pois cada técnica irá nos fornecer um tipo de resposta.
Existem algumas técnicas de sequenciamento que podem ser empregadas para o estudo do microbioma, entre elas: 1) o sequenciamento 16S que se baseia no sequenciamento das regiões hipervariáveis do gene rRNA 16S de bactérias. Esse tipo de sequenciamento é empregado devido à alta conservação evolutiva do gene 16S presente nas bactérias, presença de regiões variáveis nesse gene que permitem a diferenciação de diferentes grupos bacterianos e, além disso, pelo tamanho do gene ser menor, a amplificação e sequenciamento desse tipo de genoma é facilitada; 2) sequenciamento do DNA total (metagenoma); 3) sequenciamento do RNA total (metatranscriptoma).
Por que fazer metatranscriptômica?
A metatranscriptômica anda de mãos dadas com a metagenômica. A análise metagenômica identifica a abundância e a diversidade da comunidade microbiana. Enquanto isso, a análise do metatranscriptoma consegue identificar os microrganismos e os transcritos que estão sendo expressos no microbioma (Figura 2). No estudo de microbiomas, a metatranscriptômica possui algumas vantagens já que ao sequenciar o RNA total (RNA-Seq) de uma determinada amostra:
1) Temos informações importantes sobre a expressão gênica, ou seja, podemos ver quais os microrganismos e genes que estão sendo ativados em determinado compartimento do corpo e quais são as suas funções que eles desempenham;
2) É possível realizar estudos in vitro e investigar as diferenças no microbioma de acordo com mudanças ambientais ou a presença de uma doença, por exemplo;
3) Caracterizar genes ativos de resistência a antibióticos e interações hospedeiro-microbioma;
4) Descoberta de novos genes e funções que ainda não foram descritas, além da descoberta de novos marcadores para diversas doenças;
5) Diferentemente do sequenciamento 16S, podemos verificar não somente a presença de bactérias, mas também de fungos, vírus e archaea.
E como estudar o microbioma através da Bioinformática?
Agora que já compreendemos o que é a metatranscriptômica e quais são as suas vantagens, nos damos com a seguinte questão: Como analisar os dados gerados por esse tipo de estratégia? Assim como todos os dados brutos gerados por sequenciamento, eles devem ser pré-processados. Esse pré-processamento é necessário para podermos filtrar sequências que possuem uma qualidade muito baixa e remover adaptadores e possíveis contaminantes na nossa amostra. Um exemplo de programa muito útil para o pré-processamento que podemos citar é o Trimmomatic, o qual é muito simples de ser utilizado. O processo de montagem das sequências em metatranscriptômica pode ser desafiador, principalmente pela quantidade de microrganismos presentes e a complexidade das comunidades microbianas em uma amostra. Para este passo, podemos utilizar de duas estratégias distintas, como o mapeamento através de genomas e genes de referência e a montagem de novo de novos transcriptomas. Após mapearmos as leituras do RNA com base em genomas de referência, podemos identificar taxonomicamente os microrganismos presentes e qual é a funcionalidade do gene que está sendo expresso. Esse processo pode ser realizado por uma gama de softwares, como, por exemplo, Trinity e MEGAHIT [7-8]. Com esses dados, podemos utilizar o banco de dados KEGG para obter as vias cujos genes expressos estão regulados no microbioma, seja mais expresso ou menos expresso durante condições de saúde e doença [9]. Dessa forma, a partir dos dados de um RNA-Seq e dos diversos softwares disponíveis, podemos quantificar a expressão de genes e analisar o perfil dos microrganismos presentes.
Não sou Bioinformata! E agora?
Se você deseja analisar o microbioma da sua amostra e não tem familiaridade com os softwares de bioinformática, não se desespere. A tecnologia vem avançando conforme os anos para nos auxiliar nessas questões e facilitar o nosso trabalho. Atualmente existem ferramentas online que podem realizar análises de metagenômica e metatranscriptômica. Um exemplo de ferramenta é o ID-Seq, que é uma plataforma de bioinformática de código aberto baseada em nuvem que permite a detecção de microrganismos a partir de leituras brutas de sequenciamento de próxima geração (NGS) [10]. No pipeline do ID-Seq pode-se utilizar sequenciamento de RNA ou DNA de qualquer tipo de amostra, e o upload pode ser realizado pelo programa web ou por de linha de comando (CLI). A análise do sequenciamento passa pelas fases principais que citamos anteriormente: filtragem das sequências e controle de qualidade, montagem e também são gerados relatórios taxonômicos.
O futuro das pesquisas sobre o microbioma humano
Vimos a importância de estudar o microbioma humano. Seja qual for a estratégia utilizada, podemos obter diversas informações sobre a interação e presença desses microrganismos no nosso corpo, identificando vias e genes que podem estar ativos em situação de saúde ou em diferentes doenças. Mas o que pode ser feito com essas informações?
A identificação das vias e genes ativos podem servir como alvo farmacológico e como tratamento para inúmeras doenças em que há uma disbiose no microbioma. O desenvolvimento de medicamentos probióticos é uma área que muito se interessa pelos estudos da microbiota humana, visto que esses medicamentos podem ajudar a reconstruir a comunidade microbiana residente e ser utilizado como tratamento para doenças.
Porém, ainda há muito a ser descoberto sobre os microrganismos que habitam em nós e o papel deles em nosso corpo. Com esses estudos, o potencial para melhorar a saúde humana é grande. Com o contínuo avanço da tecnologia e da bioinformática, estamos cada vez mais perto de desvendar os “segredos” desses microrganismos e utilizar desse conhecimento para prevenir doenças de maneira mais precisa e personalizada.
Referências
[1] TURNBAUGH, P.J. et al. The human microbiome project. Nature, v. 449, p. 804–810, 2007.
[2] LEDERBERG, J. “Ome Sweet’Omics–A Genealogical Treasury of Words”. The Scientist, 2001.
[3] YAGI, K.; HUFFNAGLE, G.B.; LUKACS, N.W.; ASAI, N. The Lung Microbiome during Health and Disease. Int J Mol Sci, 2021.
[4] SAVAGE, D.C. Microbial ecology of the gastrointestinal tract. Annu. Rev. Microbiol., v. 31, p. 107–133, 1977.
[5] MOENS, E.; VELDHOEN, M. Epithelial barrier biology: good fences make good neighbours. Immunology, 2012.
[6] RAJAGOPALA, S.V. et al. The human microbiome and cancer. Cancer Prevention Research, v. 10, n. 4, 2017.
[7] GRABHERR, M.G. et al. Full-length transcriptome assembly from RNA-Seq data without a reference genome. Nat Biotechnol, v. 29, n. 7, p. 644-652, 2011.
[8] LI, D. et al. MEGAHIT: an ultra-fast single-node solution for large and complex metagenomics assembly via succinct de Bruijn graph. Bioinformatics, v. 31, n. 10, May 2015.
[9] KANEHISA, M.; GOTO, S. KEGG: kyoto encyclopedia of genes and genomes. Nucleic Acids Res, v. 28, n. 1, p. 27–30, 2000.
[10] KALANTAR, K.L. et al. IDseq—An open source cloud-based pipeline and analysis service for metagenomic pathogen detection and monitoring. GigaScience, v. 9, n. 10, October 2020.
[11] BIKEL, S. et al. Combining metagenomics, metatranscriptomics and viromics to explore novel microbial interactions: towards a systems-level understanding of human microbiome. Comput Struct Biotechnol J, 2015.
Autores: Aline de Paula Dias da Silva [https://orcid.org/0009-0003-5022-0642]; Monique Cristina dos Santos [https://orcid.org/0009-0001-1700-4329]
Revisão: Isaac Farias Cansanção [https://orcid.org/0000-0003-2125-9866]; Mira Raya Paula de Lima [https://orcid.org/0000-0002-1736-7488]
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Cite este artigo:
Silva, APD; Snatos, MC. Um mundo dentro de nós: explorando a microbiota humana através da metatranscriptômica. BIOINFO. ISSN: 2764-8273. Vol. 3. p.13 (2023). doi: 10.51780/bioinfo-03-13
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