Abordagens em bioinformática e inteligência artificial no estudo de mecanismos moleculares de enzimas HDAC na etiologia do transtorno do espectro autista

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O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição neurológica complexa, com causas genéticas e epigenéticas. Fatores ambientais durante a gestação, como exposição ao ácido valproico (VPA), podem alterar a expressão gênica por meio da inibição de enzimas HDAC, afetando o desenvolvimento cerebral. A bioinformática, com técnicas como docking molecular e modelos de aprendizado de máquina, tem papel essencial na identificação de compostos que influenciam esses mecanismos, contribuindo para o estudo da etiologia do TEA.

Autores: Alessandra G. Cioletti, Diego Mariano, Raquel C. de Melo-Minardi

Introdução

O autismo e os transtornos do espectro autista (TEA) são distúrbios complexos no desenvolvimento neurológico das crianças, caracterizados por disfunções nas interações sociais, na comunicação e em comportamentos repetitivos e estereotipados [1], com prevalência maior em meninos. No passado, a incidência de TEA era considerada rara e de etiologia genética, mas, nas últimas décadas, esse número vem aumentando em todo o mundo. Só nos Estados Unidos, o número de crianças aumentou de 1 em 150 em 2000 para 1 em 36 em 2022 [2]. No Brasil, o Censo Demográfico 2022 identificou que 2,4 milhões de pessoas foram diagnosticadas com TEA, sendo a prevalência maior entre homens (1,4 milhões) [3].

Pesquisas recentes têm demonstrado que modificações epigenéticas são importantes para a fisiopatologia do TEA. Modificações epigenéticas são alterações na expressão gênica que não envolvem mudanças na sequência de DNA, podendo ocorrer ao longo da vida. Essas alterações na expressão gênica, obtidas por meio da metilação do DNA e/ou de modificações nas histonas, resultam de influências regulatórias transcricionais de fatores ambientais, como deficiências nutricionais, poluição, álcool, cigarros, fenóis, efeitos imunológicos e medicamentos. As alterações podem ocorrer principalmente durante a gravidez devido à exposição da mãe a fatores de risco, quando a barreira hematoencefálica ainda não está formada [1].

Considerações sobre VPA e HDAC na etiologia do autismo

Um dos fatores mais estudados na causa do TEA é o ácido valproico (VPA), um medicamento comumente usado para tratar epilepsia e transtornos bipolares, cuja exposição materna pré-natal está associada à indução de comportamentos semelhantes ao TEA em modelos animais [1,4]. O VPA é um inibidor de histonas desacetilases (HDAC), principalmente das classes I e IIb. A HDAC é  uma enzima que desempenha um papel fundamental na expressão gênica, removendo grupos acetila de resíduos de lisina nas histonas (desacetilação).

A ação do VPA ocorre durante um período crítico do desenvolvimento embrionário, quando há elevada expressão de HDAC1/2. A inibição da HDAC pelo VPA leva à hiperacetilação no cérebro, afetando a densidade neuronal e a interação social. O mecanismo primário de disfunção é a interrupção do balanço epigenético durante períodos críticos do desenvolvimento neural. A ligação entre a inibição do HDAC e o TEA é reforçada pela ausência desses efeitos em análogos do VPA que não inibem o HDAC, como o valpromida (VPD) [5]. Além disso, a inibição do HDAC1 está relacionada a defeitos no sistema serotonérgico em embriões de peixe-zebra e à interferência na neurogênese precoce em células-tronco embrionárias [4].

O papel da bioinformática na compreensão dos fatores epigenéticos que podem levar ao autismo

A bioinformática desempenha um papel crucial e multifacetado na busca, identificação e otimização de inibidores de Histona Desacetilase (HDACi). Devido à homologia entre as famílias de HDACs e à toxicidade potencial dos inibidores pan-HDACs, as metodologias computacionais auxiliam na busca por seletividade e eficácia.

O design de moléculas assistido por computador é fundamental na pesquisa moderna sobre HDACi (Figura 1). Essas técnicas fornecem informações estruturais e energéticas sobre a interação entre ligante e enzima. Em um estudo recente, Sixto-Lopez e colaboradores analisaram as características estruturais, moleculares e energéticas por meio de docking molecular (ancoragem molecular) e de simulação de dinâmica molecular entre o VPA e diferentes classes de HDAC. Foi observado que o VPA se liga ao canal do sítio ativo hidrofóbico, coordenando com o zinco presente no sítio, atuando como um inibidor competitivo, impedindo a ligação do substrato com subsequente perda da atividade enzimática [6].

 

Figura 1 – Docking molecular de HDAC. Fonte: adaptado de [7].

 

O docking molecular é uma técnica computacional que simula a interação entre moléculas, prevendo como e com que força um composto pode se ligar a uma proteína-alvo, fornecendo como ponto de partida: a estimativa da energia livre de ligação e a conformação preferencial do ligante com o alvo proteico [8]. O docking é o cerne da triagem virtual (Virtual Screening), uma abordagem multicamada que integra diferentes métodos computacionais para a pesquisa e identificação de moléculas (Figura 2).

Nesse contexto, modelos de aprendizado de máquina e de inteligência artificial (IA) surgem como camadas adicionais da triagem virtual. Eles atuam como filtros para refinar essa lista de “hits” e prever suas consequências biológicas e toxicológicas no contexto do TEA. Eles também podem ser usados para prever propriedades complexas que não são intrínsecas ao algoritmo de docking padrão. Um exemplo é o caso de screening que utiliza propriedades ADMET (Absorção, Distribuição, Metabolismo, Excreção e Toxicidade) em modelos de classificação para estimar a probabilidade de um composto ser ou não um ligante para o alvo escolhido. De forma independente, assinaturas e descritores estruturais também podem ser utilizados como entrada em modelos de classificação, com o mesmo objetivo, mas  explorando padrões derivados da estrutura química [6-9]. Figura 2 – Esquema sintético de triagem virtual.

Outra possível contribuição da IA para a etiologia do TEA é realizar estudos combinando dados epigenéticos com outras tecnologias –omics (como transcriptômica ou metabolômica) [10]. Nesse pipeline, o docking identifica os ligantes que podem induzir um perfil de expressão gênica alterado, e os modelos de IA podem ser treinados para correlacionar a estrutura química dos ligantes (docking) com o perfil epigenético induzido.

Conclusão

A integração entre os resultados de docking e técnicas de IA eleva a triagem virtual a um novo patamar – deixando de ser apenas uma busca por ligantes que se encaixam, para se tornar uma ferramenta capaz de prever efeitos funcionais e toxicológicos. Assim, passamos a responder não só “o ligante se liga?”, mas “essa ligação pode causar ou reverter o fenótipo do TEA, considerando sua toxicocinética e impacto molecular?”. Essa abordagem revela o verdadeiro poder da bioinformática: conectar dados, compreender processos biológicos complexos e impulsionar o avanço na prevenção de doenças.

Agradecimentos. Os autores agradecem às agências de fomento à pesquisa: CAPES, CNPq e FAPEMIG.

Referências

[1] Saxena, R. et al. (2020). Role of environmental factors and epigenetics in autism spectrum disorders, Prog Mol Biol Transl Sci, 173:35-60. doi:10.1016/bs.pmbts.2020.05.002.

[2] Shaw, K. A. et al. (2025) Prevalence and Early Identification of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 4 and 8 Years — Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, MMWR Surveill Summ. 74(SS-2):1–22. doi: 10.15585/mmwr.ss7402a1

[3] IBGE – Censo Demográfico 2022: pessoas com deficiência e pessoas diagnosticadas com transtorno do espectro autista: resultados preliminares da amostra. (2025) 80 p. Disponível em: Censo 2022 identifica 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas com autismo no Brasil | Agência de Notícias Acesso em: 23/10/2025.

[4] Balmer, N.V. et al. (2012) Epigenetic changes and disturbed neural development in a human embryonic stem cell-based model relating to the fetal valproate syndrome. Hum Mol Genet.21(18):4104-14.
doi: 10.1093/hmg/dds239.

[5] Zhang, L.Y. et al..(2024) Role of histone deacetylases and their inhibitors in neurological diseases. Pharmacol Res. 208:107410. doi: 10.1016/j.phrs.2024.107410.

[6] Sixto-Lopez, Y. et al. (2020). Exploring the inhibitory activity of valproic acid against the hdac family using an mmgbsa approach. J Comput Aided Mol Des., 34(8):85–878. doi: 10.1007/s10822-020-00304-2.

[7] CIOLETTI, A. et al. Using graph-based structural signatures and machine learning algorithms for molecular docking assessment of histone deacetylases and small ligands. In: BRAZILIAN SYMPOSIUM ON BIOINFORMATICS. Anais do XVII BSB. Vitória, Brazil: 2 dec. 2024.

[8] CIOLETTI, A. et al. A machine learning approach for virtual screening of histone deacetylase inhibitor compounds using aromatic signatures In: BRAZILIAN SYMPOSIUM ON BIOINFORMATICS. Anais do XVIII BSB. Fortaleza, Brazil: 29 set. 2025.

[9] Srivastava, N et al. (2019). In-Silico Identification of Drug Lead Molecule Against Pesticide Exposed-neurodevelopmental Disorders Through Network-Based Computational Model Approach. Current Bioinformatics, 14(5): 460-467. doi: 10.2174/1574893613666181112130346

[10] Williams, L.A., LaSalle, J.M. (2022) Future Prospects for Epigenetics in Autism Spectrum Disorder. Mol Diagn Ther.26(6):569-579. doi:10.1007/s40291-022-00608-z

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