A importância da docagem molecular no combate às bactérias multirresistentes

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Que a resistência bacteriana é tida como um problema de saúde pública não é mais uma novidade! Bactérias das mais diversas espécies estão adquirindo resistência aos antibióticos mais potentes que existem. Isso interfere significativamente em diversos aspectos da prática clínica,  como a diminuição da eficiência terapêutica de substâncias e a redução no controle de doenças infectocontagiosas, colocando em risco profissionais da área da saúde e pacientes. 

Caracteriza-se por resistência bacteriana os mecanismos desenvolvidos por diferentes espécies que buscam reduzir ou eliminar o efeito de agentes antimicrobianos como os antibióticos. Estes mecanismos podem ser a produção de enzimas que degradam ou alteram a molécula antimicrobiana, eliminando seus efeitos nas células, ou ainda, proteínas capazes de formar uma bomba de efluxo, que seria um transportador de membrana capaz de expulsar os antimicrobianos da célula [1]. Além dos mecanismos de resistência, as bactérias têm adquirido cada vez mais habilidades de colonizarem e proliferarem em seus hospedeiros, por meio de melhora na captação de nutrientes e a utilização destes para a produção de biofilme e fatores de virulência [2].

Atualmente, diversas espécies bacterianas têm ampliado a lista de resistência, o que tem gerado o aumento na preocupação por parte dos sistemas de saúde de como controlar e contornar tal problema. Espécies como Acinetobacter baumanii, Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus e Clostridium defficile encabeçam esta lista por possuírem cepas capazes de resistir a antibióticos de segunda linha, ou seja, antibióticos específicos utilizados em infecções graves e que geralmente são mais tóxicos ou apresentam efeitos colaterais mais pronunciados do que os de primeira linha [3] .

A infectividade e patogênese dessas bactérias têm sido relacionadas com um grupo de transportadores conhecidos como transportadores do tipo ABC (ATP-Binding Cassete – Conjunto de proteínas ligadoras de ATP) envolvidos principalmente com mecanismos de evasão, resistência ao hospedeiro, fatores de superfície celular e excreção, auxílio na captação de nutrientes, entre outros [4; 5]. Transportadores do tipo ABC utilizam a energia liberada pela hidrólise de adenosina trifosfato (ATP) para translocar diferentes compostos através das membranas celulares. Isso ocorre devido a estrutura complexa destes transportadores (Figura 1) que é formada por duas proteínas ligadoras de nucleotídeos (Nucleotide Binding Domain – NBD), também conhecidas como ATPases e duas proteínas transmembranas (Transmembrane Domain – TMD) que formam um canal de passagem através da membrana celular, também conhecidas como permeases. Os transportadores do tipo importadores, ainda contam com uma proteína a mais: a proteína ligadora de substrato (Substrate Binding Protein – SBP), que é responsável por identificar e se ligar de forma específica a molécula a ser internalizada. Por se encontrar no periplasma (espaço entre a membrana e a parede celular), esta proteína também é popularmente conhecida como periplasmática [6].

Figura 1: Esquema simplificado dos componentes dos transportadores ABC do tipo exportadores e importadores. Fonte: própria autora. 

O conhecimento detalhado da estrutura e de etapas do transporte pode fazer dos transportadores ABC novos alvos para a terapêutica antimicrobiana [7] e o desenvolvimento de vacinas [8], principalmente porque os transportadores responsáveis pela internalização de nutrientes para as células são exclusivos de bactérias. Dessa maneira, os antimicrobianos desenvolvidos para inibir a captação e transporte de nutrientes a partir da ação de transportadores ABC não influenciarão a atividade dos transportadores exportadores encontrados nos eucariotos.

Existem muitos gargalos para o estudo de estruturas e funções de proteínas e um deles é a complexidade da produção destas moléculas em laboratório de forma recombinante e sua manutenção para os ensaios de atividade e inibição. O custo para produzir grande quantidade de uma proteína para testar diferentes inibidores é alto e pode desmotivar muitos pesquisadores. Mas existe um caminho alternativo. As proteínas são formadas por aminoácidos, cuja sequência é determinada pela sequência de nucleotídeos de DNA do indivíduo, assim, as análises destas sequências nos permite saber muito sobre as proteínas, de forma que podemos predizer alguns comportamentos destas moléculas. A forma como as proteínas adquirem sua estrutura é determinada em parte pela sua sequência de aminoácidos, que obedece uma série de leis físicas e químicas para que a molécula fique estável [9]. Hoje já sabemos quais posições os aminoácidos podem adotar ou não em uma estrutura tridimensional protéica e, a partir de então, com o auxílio de algoritmos específicos, podemos determinar computacionalmente a estrutura de uma proteína apenas com a sua sequência linear de aminoácidos. É o que chamamos de análises in silico.

E qual a importância disso? Podemos estimar com uma relativa precisão a função de uma proteína a partir da sua estrutura, a partir de simulações de possíveis interações entre esta proteína e diversas moléculas. É possível, por exemplo, criar um modelo tridimensional para testar diversos compostos, a fim identificar aqueles que têm uma maior probabilidade de se ligar aos transportadores ABC de bactérias resistentes, possivelmente podendo causar a sua inibição. Este método é conhecido como docagem molecular. Aqueles compostos que apresentarem os maiores índices de interação serão validados experimentalmente, a fim de determinar sua eficácia como inibidores da proteína alvo. Esta metodologia é interessante pois seleciona quais compostos deverão ser testados experimentalmente, eliminando aqueles que certamente não apresentam características que favorecem a interação, reduzindo assim o número de ensaios que precisarão ser feitos, tempo e recursos.

A aplicação da bioinformática para o desenvolvimento de novos tratamentos contra infecções é muito ampla e crescente, dada a importância do tema na saúde pública [10-11]. Entretanto, muitas outras áreas têm usado destas análises computacionais, na busca por novos alvos terapêuticos para diferentes tipos de câncer, doenças genéticas, terapias gênicas e compreensão e monitoramento de epidemias e surtos de doenças infecciosas. Sendo assim, a bioinformática se mostra essencial para a melhoria da saúde humana, aprimoramento da prática clínica e desenvolvimento de novos fármacos.

Referências

[1] Browne, K.; Chakraborty, S.; Chen, R.; Willcox, M. D.; Black, D. S.; Walsh, W. R.; Kumar, N. A new era of antibiotics: the clinical potential of antimicrobial peptides. Intern J. Mol. Sci. 2020, 21(19), 7047.

[2] SAMPAIO, Aline et al. The periplasmic binding protein NrtT affects xantham gum production and pathogenesis in Xanthomonas citri. FEBS Open bio, v. 7, n. 10, p. 1499-1514, 2017.

[3] Prestinaci F, Pezzotti P, Pantosti A. Antimicrobial resistance: a global multifaceted phenomenon. Pathog Glob Health. 2015;109(7):309.

[4] CREMONESI, Aline Sampaio et al. The citrus plant pathogen Xanthomonas citri has a dual polyamine-binding protein. Biochemistry and Biophysics Reports, v. 28, p. 101171, 2021.

[5] TER BEEK, Josy; GUSKOV, Albert; SLOTBOOM, Dirk Jan. Structural diversity of ABC transporters. Journal of General Physiology, v. 143, n. 4, p. 419-435, 2014.

[6] LOCHER, Kaspar P. Mechanistic diversity in ATP-binding cassette (ABC) transporters. Nature structural & molecular biology, v. 23, n. 6, p. 487-493, 2016.

[7] COUNAGO, Rafael et al. Prokaryotic substrate-binding proteins as targets for antimicrobial therapies. Current Drug Targets, v. 13, n. 11, p. 1400-1410, 2012.

[8] CONVERSO, Thiago Rojas et al. A protein chimera including PspA in fusion with PotD is protective against invasive pneumococcal infection and reduces nasopharyngeal colonization in mice. Vaccine, v. 35, n. 38, p. 5140-5147, 2017.

[9] NELSON, David L.; COX, Michael M. Princípios de bioquímica de Lehninger. Artmed Editora, 2022.

[10] CHUKWUDOZIE, Onyeka S. et al. The relevance of bioinformatics applications in the discovery of vaccine candidates and potential drugs for COVID-19 treatment. Bioinformatics and Biology Insights, v. 15, p. 11779322211002168, 2021.

[11] SAEB, Amr TM. Current Bioinformatics resources in combating infectious diseases. Bioinformation, v. 14, n. 1, p. 31, 2018

Autora: Aline Sampaio Cremonesi [ORCID: 0000-0002-1283-1237]

Revisão: Wylerson Nogueira

Cite este artigo:

Cremonesi, AL. A importância da docagem molecular no combate às bactérias multirresistentes. BIOINFO. ISSN: 2764-8273. Vol. 3. p.20 (2023). doi:10.51780/bioinfo-03-20

Aline Sampaio Cremonesi
WRITTEN BY

Aline Sampaio Cremonesi

Formada em Ciências Biológicas - Bacharelado e Licenciatura (2009) pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), possi mestrado em Biologia Funcional e Molecular com ênfase em Bioquímica (2012) pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorado em Biotecnologia (2015) pela Universidade de São Paulo (USP), desenvolvendo todos os projetos no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) operado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Energia em Materiais (CNPEM) em Campinas. Tem experiência com bioinformática, análise de sequências, manipulação de ácidos nucleicos e proteínas, clonagem, expressão heteróloga, purificação de proteínas e análises biofísicas, estruturais de proteínas e peptídeos. Tem experiência e treinamento pelo European Molecular Biology Laboratory (EMBL) em espalhamento de raios-X a baixos ângulos (SAXS) para estudos estruturais de proteínas e interações proteína-ligante. Atualmente é docente de ensino superior em Biologia Molecular e Biotecnologia e orienta alunos de Iniciação Científica em projetos de bioinformática para estudos de transportadores ABC de bactérias resistentes a antimicrobianos. Desde 2021 integra o PyLadies Bioinfo, grupo de mulheres destinado ao estudo da linguagem Python para resolução de problemas biológicos.

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