Desafiando a resistência antimicrobiana: o potencial terapêutico da fagoterapia

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A utilização de vírus como nossos aliados pode causar certa apreensão, especialmente após a experiência trágica vivida durante a pandemia de COVID-19. No entanto, um diferente problema de saúde coletiva tem permanecido invisível aos olhos da população: a resistência antimicrobiana (RAM). Atualmente, a RAM tem se tornado uma crescente ameaça à saúde pública global, afetando seres humanos, animais e vegetais. O uso indiscriminado de antibióticos tem intensificado esse problema, levando ao crescimento do número de mortes por infecções bacterianas — uma cifra que se aproxima dos óbitos por HIV e malária [1]. Desse modo, a comunidade científica tem dado grande ênfase ao desenvolvimento de novos tratamentos eficazes, como é o caso da utilização de bacteriófagos.

O que são bacteriófagos?

Os bacteriófagos são vírus que possuem a habilidade de predar bactérias (Figura 1). Tratam-se da entidade mais amplamente distribuída no planeta, podendo ser encontrada em qualquer ambiente que contenha uma bactéria. Além disso, segundo Keen (2015) [2], estima-se que haja cerca de 1 trilhão de fagos para cada grão de areia no mundo.

Figura 1: Estrutura 3d de bacteriófago T4. Imagem gerada através do Software ChimeraX. Fonte: Victor Padilla-Sanchez (CC-BY 4.0) [3].

Funcionamento da terapia

A terapia baseada em bacteriófagos, conhecida como “fagoterapia”, é uma estratégia terapêutica promissora, que pode ser administrada por meio de coqueteis — intravenosos, por via oral ou nasal — contendo diferentes fagos. O mecanismo de ação dos bacteriófagos ocorre de maneira altamente específica, por meio do reconhecimento de receptores presentes na superfície das bactérias-alvo — ao contrário dos antibióticos convencionais, que acabam por degradar a microbiota essencial ao ser humano. Além disso, os bacteriófagos isolados nos coquetéis podem ser naturais ou geneticamente modificados e são selecionados com base em seu potencial de interação com a bactéria-alvo. Visto isso, a ligação do fago à célula hospedeira desencadeia a liberação do material genético viral, culminando na lise da bactéria (Figura 2). Portanto, diante da crescente resistência antimicrobiana, a fagoterapia surge como uma alternativa terapêutica de grande relevância.

Figura 2: Representação do ciclo lítico do bacteriófago. A) O fago possui proteínas ligantes (representadas em esferas rosas) que reconhecem receptores de membrana específicos (receptores vermelhos) da bactéria-alvo. B) A partir do reconhecimento receptor-ligante, o bacteriófago adere-se à membrana da bactéria e, em seguida, libera o seu material genético. C) O material genético introduzido na célula é reconhecido por proteínas bacterianas, que transcrevem e traduzem os genes virais, levando à síntese de novos bacteriófagos. D) Além dos próprios bacteriófagos, o material genético viral também contém genes que codificam enzimas destrutivas, capazes de lisar a célula hospedeira. Dessa forma, os bacteriófagos recém-sintetizados são liberados e inicia-se um novo ciclo de infecção.  Fonte: Próprio autor.

A fagoterapia é secular

O bacteriófago foi descoberto por William Twort (1915) e Felix d’Herelle (1917) na Europa e seus primeiros ensaios clínicos como tratamento antimicrobiano datam desse período. Desse modo, há mais de 1 século a fagoterapia começou a ser aplicada em seres humanos, principalmente em países do leste europeu, para combater infecções como febre tifoide, cólera e disenteria. No entanto, com a Guerra Fria, a fagoterapia foi deixada de lado pelos países ocidentais e substituída por novos antibióticos, como a penicilina (EUA) e sulfonamidas (Alemanha). Entretanto, com o aumento dos casos de RAM, durante as décadas de 1990 e 2000, os estudos envolvendo a fagoterapia foram resgatados mundialmente. Países do leste europeu nunca interromperam sua pesquisa e aplicação terapêutica e possuem destaque na fudação de centros especializados, como a Phage Therapy Unit (PTU) — associada ao Ludwik Hirszfeld Institute of Immunology and Experimental Therapy — na Polônia.

Vantagens da fagoterapia

As bactérias podem se defender dos vírus por meio de mutações que afetam seus receptores. Isso pode levar à seguinte questão: por que as bactérias não simplesmente modificam ou excluem o receptor e se tornam imunes ao vírus? No entanto, a resposta é mais complexa do que parece, uma vez que esses receptores possuem diferentes funções, como a liberação de substâncias tóxicas e a movimentação celular — como em casos de receptores incrustrados no flagelo bacteriano —, e não apenas a adesão do vírus. Ademais, tanto o DNA bacteriano quanto o DNA viral são sujeitos a mutações durante o processo de replicação no citoplasma hospedeiro, o que permite que a mutação viral naturalmente acompanhe a mutação bacteriana.

O papel da bioinformática

A bioinformática constitui uma etapa imprescindível para o delineamento de um coquetel fagoterápico. Para que um bacteriófago seja eficaz na luta contra as bactérias, é crucial que ele tenha ação lítica, ou seja, que tenha capacidade de inserir seu DNA na célula-alvo, resultando na autodestruição desta última. Assim, técnicas de sequenciamento e mapeamento genético possibilitam a identificação de vírus que apresentem genes codificantes de proteínas relacionadas a esse processo, como holinas e endolisinas. Além disso, uma vez que que os fagos são específicos em relação aos receptores de superfície bacterianos, a identificação e seleção da linhagem que ataca a bactéria em questão torna-se fundamental.

Referências bibliográficas

[1] MURRAY, C. J. L. et al. Global burden of bacterial antimicrobial resistance in 2019: a systematic analysis. The Lancet, [s. l.], v. 399, n. 10325, p. 629–655, 2022. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02724-0/fulltext. Acesso em: 27 abr. 2023.

[2] KEEN, E. C. A century of phage research: Bacteriophages and the shaping of modern biology. BioEssays : news and reviews in molecular, cellular and developmental biology, [s. l.], v. 37, n. 1, p. 6–9, 2015. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4418462/. Acesso em: 28 abr. 2023.

[3] Victor Padilla-Sanchez (CC-BY 4.0). Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bacteriophage_t4_and_pack_machine_wiki.png. Acesso em 14 de julho de 2023.

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[5] BRIVES, C.; POURRAZ, J. Phage therapy as a potential solution in the fight against AMR: obstacles and possible futures. Palgrave Communications, [s. l.], v. 6, n. 1, p. 1–11, 2020. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41599-020-0478-4. Acesso em: 28 abr. 2023.

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[9] SANCHEZ, B. C. et al. Development of Phage Cocktails to Treat E. coli Catheter-Associated Urinary Tract Infection and Associated Biofilms. Frontiers in Microbiology, [s. l.], v. 13, 2022. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmicb.2022.796132. Acesso em: 27 abr. 2023.

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[11] ŻACZEK, M. et al. Phage Therapy in Poland – a Centennial Journey to the First Ethically Approved Treatment Facility in Europe. Frontiers in Microbiology, [s. l.], v. 11, 2020. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmicb.2020.01056. Acesso em: 27 abr. 2023.

Autora: Bruna Espiño dos Santos, https://orcid.org/0009-0007-5419-0873

Revisão: Diego Mariano

Cite este artigo:

Santos, BES. Desafiando a resistência antimicrobiana: o potencial terapêutico da fagoterapia. BIOINFO. ISSN: 2764-8273. Vol. 3. p.06 (2023). doi: 10.51780/bioinfo-03-06

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